Luiz Nunes de Oliveira, da Fapesp: Hora do salto em inteligência artificial

Quando trata-se no surgimento de uma nova onda tecnológica, no Brasil, costuma-se quase sempre se dizer que o país corre o risco de perder o bonde da história, pois está atrasado na corrida. No caso da inteligência artificial (AI), a questão não é bem assim. Tudo bem que não estamos na condução deste veículo, mas o país não está tão longe dos motorneiros assim, como aponta Luiz Nunes de Oliveira, coordenador adjunto da diretoria científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) para Programas Especiais e Colaborações em Pesquisa.  Em duas décadas, o número de projetos de AI financiados pela entidade subiu de cinco para 40, por ano.

Para ele, é difícil imaginar um tipo de negócio que não venha ser afetado pela AI nos próximos 20 anos. “Todos os setores da economia vão procurar a AI para evoluir. Alguns, mais depressa, outros mais devagar, mas logo todos perceberão que é preciso correr”, analisa Nunes, que traça dois cenários que têm no desenvolvimento de recursos humanos um fator decisivo para a expansão da tecnologia.

“Precisamos reforçar o impulso que já temos para dar um salto adiante. Para isso, é importante dar atenção à pesquisa básica na área, que é a galinha dos ovos de ouros”, aponta o especialista. Confira a entrevista exclusiva que Nunes concedeu ao portal NewVoice.ai:

NewVoice.ai – Que cenário o senhor faz do uso da tecnologia de inteligência artificial no Brasil?

Luiz Nunes de Oliveira – A inteligência artificial já faz parte do dia a dia de todos nós e tende a crescer e se expandir rapidamente, já no futuro próximo. Áreas que já estão sendo muito beneficiadas e serão ainda mais são agropecuária (incluindo previsão do tempo), setor financeiro, mineração e os setores upstream e downstream da produção de óleo e gás, veículos (incluindo aeronáutica) e comunicações. Exemplos de áreas em que há grande potencial para avanço são as indústrias química e farmacêutica, saúde, transporte, manufatura complexa, geração e distribuição de energia (além de óleo e gás), segurança e mídia. E a AI terá uma capilaridade muito grande. Via aplicativos e redes sociais, ela já alcança diretamente, de forma oculta, a maior parte da população. Esse desenvolvimento irá se intensificar, a ponto de os usuários se tornarem parte do processo.

NewVoice.ai – Que visão o senhor projeto para o desenvolvimento dessa tecnologia aqui?

Luiz Nunes de Oliveira – Posso antever dois cenários, um pessimista e outro otimista. No pessimista, a área continuará a evoluir com a tendência do momento, que parece ser exponencial no estado de São Paulo, mas poderá encontrar um teto na disponibilidade de recursos humanos. Nesse caso, o setor mais prejudicado será a indústria, que terá dificuldade em migrar para a manufatura 4.0, mas o país como um todo sofrerá porque muito do que poderia ser feito aqui será importado.

No cenário otimista, boas condições propiciarão a formação de recursos humanos de alta qualidade em todo o país, em ambiente universitário enriquecido pela colaboração com o setor empresarial. Pequenas empresas formadas por pessoas educadas nesse ambiente e empresas maiores que recrutarão profissionais bem formados garantirão a evolução dos segmentos onde a AI ainda tem pouca penetração. Nessa hipótese, a AI, e não apenas os seus resultados, passará a fazer parte da cultura brasileira.

NewVoice.ai – No mundo, que fatores estão permitindo a rápida expansão dessa solução em diversos segmentos de mercado?

Luiz Nunes de Oliveira – A fundamentação teórica que permitiu o desenvolvimento da AI apareceu no final dos anos 1970 e levou uma década até se firmar. Só mais adiante o seu potencial foi reconhecido. Estamos agora colhendo os frutos dessa evolução, muito beneficiada pelo avanço na tecnologia de informação e comunicação. Igualmente importante foi o desenvolvimento científico, que se voltou para a AI porque precisou de ferramentas inovadoras especialmente produzidas para processar o grande volume de dados que começaram a aparecer em laboratórios, desde os de grande porte (como o CERN) até os de pequeno (de nano ou biotecnologia, por exemplo).

Dois outros avanços criaram motivação especial para a AI crescer: a internet das coisas (IoT) e a manufatura 4.0 (ou avançada). Um dos aspectos importantes da IoT é que as “coisas”, máquinas e sensores, geram dados em volume muito superior ao que se conhecia no século XX. Sem AI, é difícil fazer análise desses dados. Por seu lado, a manufatura 4.0 emprega sensores e bases de dados para oferecer aos operadores de máquinas informações precisas que permitem realizar o trabalho com muito mais precisão e rapidez. Os computadores que fornecem tais informações dependem essencialmente da AI para traduzir para a linguagem humana os números armazenados em seus arquivos.

NewVoice.ai – Como o senhor analisa os impactos que a inteligência artificial pode trazer para o mundo dos negócios e para o dia a dia das pessoas?

Luiz Nunes de Oliveira – É difícil imaginar um tipo de negócio que não venha ser afetado pela AI nos próximos 20 anos. O futuro da manufatura se chama 4.0, por enquanto. Os cirurgiões e os policiais terão aconselhamento online sempre que tiverem de tomar uma decisão operacional difícil. A agricultura de precisão estará ao alcance do pequeno produtor. E até o ambulante que vende café da manhã na porta do metrô vai ganhar um aplicativo capaz de prever quantos pães venderá naquela manhã de inverno. Todos os setores da economia vão procurar a AI para evoluir. Alguns, mais depressa, outros mais devagar, mas logo todos perceberão que é preciso correr.

No dia a dia, a AI se espalhará sem que os usuários precisem fazer força. Já há, por exemplo, no Brasil e em outros países, aplicativos que avisam se vai chover num determinado quarteirão nos próximos 15 minutos. Quem se aventura a dirigir em São Paulo numa véspera de feriado sem consultar um dos aplicativos de trânsito? Tudo isso depende da AI, e logo vai haver muito mais. Sem percebermos, existe um número crescente de dados que poderiam nos ajudar a viver melhor (sobre saúde, risco de acidente, recursos à disposição etc.) e que estão esperando para serem processados. A AI irá nos ajudar nessa tarefa.

NewVoice.ai – O Brasil está perdido mais uma vez? Corre o risco de perder o bonde da história?

Luiz Nunes de Oliveira – Boa parte da população brasileira se informou sobre a AI por meio da mídia internacional. O filme de Spielberg contribuiu bastante para a popularização do termo. Não significa, porém, que o país esteve até aqui distante do tema.

Na década de 1980, vários departamentos de física de universidades brasileiras participaram da construção dos fundamentos teóricos da AI, e resultados importantes foram obtidos aqui. No domínio da computação, houve muito trabalho, principalmente a partir dos anos 1990. No campo das aplicações, houve trabalho bastante produtivo em várias áreas do conhecimento – reconhecimento de padrões, engenharia química e linguística são exemplos.

Mais recentemente, tem havido crescimento notável do trabalho na área. O número de startups financiado e o volume de investimento da Fapesp documentam essa evolução. Há também pesquisa em várias empresas genuinamente brasileiras. Não se pode dizer que o Brasil esteja conduzindo o bonde da história nessa atividade, mas não estamos tão longe assim dos motorneiros.

NewVoice.ai – O que é preciso fazer para não ficar atrás nessa corrida?

Luiz Nunes de Oliveira – Precisamos reforçar o impulso que já temos para dar um salto adiante. Para isso, é importante dar atenção à pesquisa básica na área, que é a galinha dos ovos de ouros. A computação evolui tão rapidamente que alguns anos de desatenção a esse segmento seriam suficientes para iniciar o desmonte do time que está ganhando. Seria equivocado concentrar investimentos nas aplicações mais promissoras para este ou aquele setor mais promissor da economia. Há apenas um único investimento de retorno garantido: a formação de bons recursos humanos em um ambiente de pesquisa internacionalmente competitivo. A parceria com empresas é um instrumento valioso, principalmente porque permite identificar problemas ainda não estudados, que conduzirão a novos métodos e, possivelmente, a novos paradigmas científicos.

As pequenas empresas são atores importantes. As empresas constituídas por jovens pesquisadores formados no ambiente de pesquisa trazem novas ideias, entusiasmo e flexibilidade, ingredientes essenciais para o trabalho em um campo em contínuo renascimento. É preciso oferecer condições para que elas frutifiquem.

NewVoice.ai – A Fapesp tem feito o quê para financiar as pesquisas nessa área do conhecimento?

Luiz Nunes de Oliveira – A Fapesp mantém uma carteira de programas que atende muito bem às necessidades do setor. O Programa PIPE (Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas), que financia pesquisa em pequenas empresas, tem sido especialmente importante. O número de projetos de AI financiados por ano subiu de cinco para 40 em duas décadas. Alguns dos resultados são notáveis. Além disso, ela tem oferecido chamadas especiais voltadas para a área: a chamada de propostas, em colaboração com a IBM, para pesquisa em Agricultura Digital, por exemplo. A mais recente iniciativa é o Centro de Pesquisa em Engenharia (CPE) .

NewVoice.ai – Qual é a importância da criação desse novo centro em parceria com a IBM?

Luiz Nunes de Oliveira – O novo centro abre perspectivas muito atraentes para a evolução da área. A constituição de um novo CPE garante sinergia ao trabalho de um número grande de pesquisadores. A experiência com os CPEs já implantados nos faz esperar resultados de grande valor. Além disso, o parceiro da Fapesp na chamada tem características muito especiais.

A IBM já desenvolve pesquisa no Brasil há quase uma década, em laboratórios sediados em São Paulo e no Rio. Desses laboratórios, e de suas parcerias internacionais, virão problemas que alimentarão a carteira de pesquisa do Centro. E a participação dos pesquisadores da IBM, que trarão uma cultura diferente da reinante nas instituições acadêmicas, deverá enriquecer o ambiente de trabalho.

Finalmente, a participação do centro na Rede Horizons de AI  – a primeira instituição latino-americana a integrar a rede, e uma das primeiras ao sul do Equador – oferecerá oportunidade para colaboração com alguns dos mais importantes centros de pesquisa de AI.

NewVoice.ai – Que foco o centro terá no desenvolvimento de novas pesquisas?

Luiz Nunes de Oliveira – A imagem de uma árvore ajuda a responder a essa pergunta. O tronco da árvore, isto é, o cerne do trabalho investigativo, será a pesquisa fundamental em AI e a formação de recursos humanos. As aplicações são os ramos. Aqui se incluem agronegócios e biotecnologia, saúde, finanças, proteção ao meio ambiente, óleo gás e mineração e estudos sobre o impacto da AI na sociedade e na economia. Como numa árvores, os ramos tanto se alimentam do que provém do tronco como são fonte de energia que beneficia toda a estrutura.